por Adriana Marmo*
Sou aquele tipo de corredora que os atletas costumam chamar de pangaré ou, mais carinhoso, panga. Não me ofendo. Ao contrário, tenho orgulho de pertencer a esse grupo, que uma hora ou outra vai cruzar a linha de chegada. Me orgulho porque, graças ao meu treinamento, invariavelmente chego bem e vivo momentos de absoluta alegria ao longo do percurso de uma competição. E chego sempre com a sensação de vitória.
Apesar disso, na minha segunda São Silvestre eu larguei no pelotão da elite. Uma experiência inesquecível. Aquecimento sob o vão livre do Masp, água gelada e banheiros limpos... ah como é boa a vida de quem é vencedor. Tá certo que eu me senti um peixe completamente fora d´água. Enquanto eu aproveitava a sombra para economizar as minhas energias e arriscava, no máximo, mais alguns movimentos de alongamento, elas se aqueciam fazendo tiros. Achei melhor até procurar uma sombra mais distante para não deixar que aquela diferença tão exacerbada chamasse a atenção da imprensa.
Hora de ir para o funil. Eu estava muito segura da minha capacidade naquela prova. Estava bem treinada, hidratada e alimentada, mas o fato de conhecer as dificuldades do trajeto (ai que calor!) me deixou muito tensa.
Aquele pelotão é uma maravilha, não tem empurrão, não tem muvuca. É tudo organizadinho. Uma beleza! Me posicionei na última fila e no canto da direita. Tudo para evitar atropelamentos ou atrapalhar minimamente o desempenho de uma das puro-sangue. Deu a largada. Fiz o sinal da cruz e quando fui dar o primeiro passo... cadê todo mundo? Elas saíram correndo, ou melhor, dispararam e me deixaram sozinha no meio da avenida Paulista. Tive vontade de rir e, logo depois, de me esconder sob o asfalto. Foram cerca de 50 ou cem metros (pareceram quilômetros) até que as poderosas do "povão" me alcançassem. É possível imaginar o que eu ouvi até que a massa me escondesse. Ri da minha situação e isso foi ótimo para relaxar e seguir o meu caminho, que era longo.
Uma largada como essa faria qualquer um perder a concentração. Comigo não foi diferente. Quando percebi, havia feito o primeiro quilômetro 1 minuto abaixo do tempo previsto. Puxei o freio de mão e segui em frente. Consolação, praça da República, avenida São João e ai ai ai lá vem o Minhocão. Um ventinho que soprava entre os prédios ajudou a dura travessia, o que me animou muito. Cheguei ao final do viaduto pensando "ufa, uma dificuldade a menos". Mas percebi que uma bolha havia se instalado entre os meus dedos do pé esquerdo e que algo machucava um outro dedo no pé direito. "Xi, temos problemas", pensei. Aumentei a minha concentração e observei o quanto tudo estava correndo bem e que as bolhas seriam administráveis. Abstrai o incômodo e segui em frente.
Até ali, apesar de controlar a minha velocidade e continuar com o freio de mão puxado, eu vinha passando todos os quilômetros a cerca de 5 a 10 segundos mais rápida que o previsto. Tomei dois copos de água em cada posto e ainda carrega um terceiro só para molhar a garganta e o corpo. Estava me sentindo muito bem e decidi manter aquele ritmo para, se fosse preciso, ir mais devagar na avenida Rudge, na minha opinião, a pior parte do trajeto.
É uma reta infindável. Não há uma árvore e ainda a subida do viaduto, que naquelas condições faz a Biologia da USP parecer um plano inclinado. É hora de enfrentá-la. Respirei fundo e pisei nele. Nossa como estava quente! Era um calor que subia do asfalto. Sentia a quentura na sola dos pés como se eu estivesse calçando um par de Conga com o seu solado fino. O sol começou a arder e o calor foi ficando insuportável. E eu pensava... falta pouco, respira. Procurava distração. Pensei no meu filho, na minha primeira São Silvestre e nada de o calor passar. Tentei imaginar meus gatos dormindo e ... o viaduto acabou! Viva!
A velocidade já havia diminuído um pouco, mas eu continuava bem. Nesse momento eu estava entrando na Rio Branco. Senti que aquele era o meu dia. Eu tinha grandes chances de fechar a prova alguns minutos abaixo do tempo previsto. Nada mal começar o ano com uma vitória dessas. Agora, era só administrar o cansaço, pois a máquina estava funcionando bem.
Mas durou pouco. Logo no início da avenida Rio Branco soou o alarme vermelho: uma insuportável cólica de intestino. Na hora pensei: "Isso eu também posso administrar. Fica tranqüila, respira, mulher, respira". Passou, ufa! Cem metros à frente, mais uma dor forte. "Calma, Adriana, respira, administra. Faltam apenas cinco quilômetros." Passou e, em seguida veio, a terceira crise. Aí eu percebi que a força da minha mente não resolveria o problema e tinha de achar uma outra solução. Mas como?
Olhei para a minha direita e vi um "oásis" (a prova de que tudo na vida da gente pode mudar de acordo com as necessidade) na esquina do largo do Paissandu: Pastelaria Chinesa. É aqui mesmo que eu vou entrar.
Três funcionários sisudos apontaram para a porta à direita. Se o banheiro tivesse a mesma linha da expressão deles, as coisas estariam complicadas. O local era pior. A falta de papel e de água na pia são meros detalhes. Pensei em desistir, mas não seria justo com o meu empenho nos treinos e, além do mais, enfrentar certos desafios fazem parte da experiência de um corredor.
Ao voltar para a corrida, eu já não era mais a mesma. Estava fraca e o desânimo tomou conta de mim. Estava arrasada e, para piorar, me deixei tomar pelos pensamentos derrotistas. "Perdi a prova, quebrei... acabou".
Segui em frente em um trote bem leve. Aí, aqueles comentários idiotas do público, começam a magoar e a te puxar mais para baixo. Mas aí são Francisco de Assis decidiu dar uma forcinha. Bem diante da igreja desse santo, de quem sou devota, encontrei uma corredora de Curitiba. Ela estava mais triste do que eu. Completaria a prova em 1h20, mas quebrou. Aquilo me deu uma força tremenda. Olhei para ela e disse: "De jeito nenhum, nós vamos vencer essa parada". Sugeri que caminhássemos até o viaduto Maria Paula, tomar água e subir a Brigadeiro correndo. Essa seria a nossa vitória. Ela topou. Fomos até lá falando dos nossos ídolos em corrida. Ela me contou de uma senhora de 60 anos que estava alguns minutos à frente, e eu falei orgulhosa da história da dona Mitiko, da Márcia Guijarro, que venceu o sobrepeso, uma hérnia de disco, problemas no joelho e continua participando de corridas, inclusive essa. Na Brigadeiro fomos "puxando" outras meninas que estavam caminhando. Formamos um grupo até que grande e subimos em bloco, devagar e ritmadas. É nessa hora que um bom treino faz toda diferença. Apesar de me sentir um pouco fraca, foi fácil subir a Brigadeiro, ainda mais que é um percurso inteiramente à sombra. Fui aumentando a velocidade lentamente. Cruzei a São Carlos do Pinhal e eu fui sentindo que faltava pouco para a curva e os 400 metros finais. Deixei que os meus passos ficassem mais largos, estufei o meu peito e balancei os braços com mais vigor. Virei a esquina. Entrei na Paulista. Aumentei a velocidade como se eu estivesse fugindo de um ano duro e cheio de obstáculos (exatamente como foi essa São Silvestre) e correndo atrás da esperança de um ano melhor. Pensei no meu filho e o meu queixo começou a tremer. Não, ainda não dava para chorar. Isso dificulta a respiração. De longe eu vi o relógio 1h48´00´´ e pensei: vou chegar antes dos 49, corre corre... vai, mais rápido...já vai acabar. Cruzei a linha com os braços para o alto, o peito estufado e orgulhosa de mim mesmo. O relógio marcava 1h48´30´´. Aí, sim, eu chorei de alegria, de cansaço, de orgulho, mas principalmente por poder começar um ano com uma vitória.
* Adriana Marmo, maratonista (4h52 em Nova York 99), jornalista, editora da Revista MANEQUIM, mãe do Bento e dos gatos Silvestre (em homenagem à corrida) e Diana.
sábado, 29 de dezembro de 2007
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