sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Uma brisa de verão inesquecível

por José Eduardo Barella*

Foi minha primeira São Silvestre. E confesso que, há exatos doze meses, não poderia imaginar que algum dia disputaria essa ou qualquer outra corrida. Meus planos esportivos para 2007 limitavam-se a um reforço nas pedaladas da minha bike ou, no máximo, voltar a freqüentar a academia para recuperar a forma. Para ser sincero, a São Silvestre, até então, era para mim uma vaga lembrança da infância, quando a prova era disputada à noite. Minha família se reunia para o Réveillon na casa uma tia. A TV branco-e-preto ficava ligada e, quando o ganhador cruzava a linha de chegada, por volta da meia-noite, começavam os fogos e também o brinde de Ano Novo.

Entrei no mundo das corridas graças ao Arnaldo de Souza, jornalista que conheci num sábado de janeiro passado, quando fomos buscar nossas filhas num acampamento. Com argumentos sólidos sobre os benefícios da corrida e a insistência de um pregador religioso, Arnaldo tentava me convencer a acordar cedo quatro vezes por semana, abrir mão da cervejinha noturna com os amigos e sacrificar as manhãs de sono de domingo para participar de provas de rua. Como estava incomodado demais com meus 98 kg de peso, decidi arriscar e me apresentei ao professor Wanderlei de Oliveira. No mês seguinte consegui arrastar a Cris, com quem estou casado há 20 anos e mãe de nossas duas filhas, para a aventura.

Depois de dez meses, oito provas de 10 km, centenas de quilômetros de rodagem no Ibirapuera e outros tantos em testes na pista do Estádio Ícaro de Castro Mello, lá estava eu — 8 kg mais magro — na tarde de 31 de dezembro, em plena Avenida Paulista, no meio da multidão de 20 mil pessoas, para participar da São Silvestre. O calor infernal, de 31° C, era minha única preocupação. De resto, estava concentrado, confiante e absolutamente realizado por tudo de diferente que havia acontecido comigo em 2007, incluindo os novos amigos que fiz na Run For Life.

A São Silvestre é uma corrida exótica e única. Só quem nasceu ou viveu a maior parte da vida em São Paulo entende a emoção de disputar uma prova nas ruas do centro. Nos primeiros metros da Avenida Paulista, sem espaço para mexer os braços e sob um calor que subia do asfalto, como numa sauna, corri próximo da grade que separa o público. Vi de perto a cara de espanto e curiosidade com que as pessoas olhavam os corredores, certamente querendo saber o que os fazia estar ali, naquele forno. Correndo para quê, afinal?

A resposta veio poucos metros depois, quando dobrei a esquina e entrei na Rua da Consolação. De repente, tudo mudou: a multidão de corredores dispersou pelas dez faixas dos dois sentidos da avenida. Desci a Consolação na contra-mão e sob uma brisa redentora, que se tornou ainda mais intensa quando passei ao lado das árvores gigantescas do Cemitério da Consolação. A sensação de prazer é indescritível e dali em diante passei a prova esperando a chance de sentir novamente aquela brisa.

O calor foi apertando a cada novo trecho ­— Ipiranga, São João, Minhocão. Na saída do elevado, fui abençoado por uma senhora anônima, que banhava os corredores com um esguicho. Encharcado e aliviado, encarei com facilidade outra subida terrível, perto do Memorial da América Latina (depois soube que muita gente desistiu ou pensou em desistir nesse ponto). Não senti tanto porque àquela altura só pensava na subida da Brigadeiro Luis Antônio — e ela ainda estava longe. Mas tive a certeza de que o calor seria o único obstáculo e, por isso, passei a me poupar ao máximo. Cheguei a dar bronca nas minhas duas companheiras de prova, as também jornalistas Fabiana Nogueira e Shâmya Salem, que estavam num ritmo forte demais.

Ao cruzar o quilômetro 9 me sentia desgastado física e psicologicamente. O que estou fazendo aqui? Como acontece todos os anos, desde sábado, dia 29, minha família estava reunida num hotel-fazenda a 40 minutos de São Paulo desfrutando todos os prazeres da vida. Quando dizia para eles — eram cerca de 120 pessoas — que ia disputar a São Silvestre, a maioria me perguntava: “Para quê?”. Nos dois dias anteriores, abri mão da capirinha à beira da piscina, da tradicional pelada de futebol, e da bebelança na noite do dia 30, quando meu cunhado e um primo comemoraram 50 anos numa festa-baile de arrepiar, só para completar a São Silvestre. Exausto, era eu que me perguntava naquele momento na avenida: “Para quê?”

Recuperei minhas forças quando voltei a sentir aquela brisa redentora no cruzamento da Avenida Rio Branco com a Ipiranga. Já havia passado o quilômetro 10, faltava só um terço de prova para disputar. Vai dar, pensei. De quebra, um grupo de 30 corredores, todos uniformizados e trotando no mesmo ritmo, entoava um grito de guerra desafiador e, ao mesmo tempo, irônico: “Ô Brigadeiro, cadê você?/Eu vim aqui só prá te ver.”
Que venha a Brigadeiro!, pensei, num momento de heroísmo. A confiança aumentou ao cruzar o Viaduto do Chá, sob uma lufada de brisa tão intensa quanto à da Consolação.

Depois de subir a Líbero Badaró, pesadíssima, sofri o maior golpe de toda a corrida: saí de frente para a Brigadeiro Luis Antônio, tomada por uma maré de corredores. O trecho começava com uma descida e, depois, uma subida terrivelmente longa. Podia-se ver o trajeto inteiro — e ele parecia interminável. Fiquei tão transtornado que decidi não olhar mais para frente, só para baixo. Não vai dar, pensei. Tentei manter a passada, mas aquela subida não ajudava. Fui lentamente diminuindo o meu ritmo, enquanto Fabi e Shâmya, animadíssimas, aceleravam o delas. Fabi chegou a me empurrar, literalmente, durante uns dez metros para motivar aquele morto-vivo trotando. Não sentia cansaço muscular ou falta de fôlego, apenas calor, muito calor. Confesso que não me recordo dos últimos 50m na Brigadeiro. Quando me dei conta, já estava entrando na Paulista. Aí o cansaço, o calor e o desânimo foram embora. Cruzamos os três juntos, de mãos dadas.

Fui recebido como herói pelos parentes quando voltei para o hotel-fazenda com a medalha no pescoço. Meus primos simplesmente não acreditavam que eu tinha conseguido terminar a prova sob aquele calor. Comemorei minha vitória épica no dia seguinte, com uma caipirinha à beira da piscina. A Brigadeiro e 2007 já eram. O desafio agora é encarar uma meia-maratona e correr em busca daquela inesquecível brisa de verão.

*José Eduardo Barella é jornalista e ganhou mais medalhas nos últimos dez meses do que nos outros 44 anos de vida.

3 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns Edu pela força de vontade e determinação. Eu gostaria de ter tido esse mesmo empenho que você, mas devido há algumas mudanças que ocorreram em minha vida recentemente eu desisti de correr a prova mesmo já tendo feito a inscrição. Pode ter certeza de que se já me sentia arrependido de não ter corrido a São Silvestre esse ano, após ler esse depoimento, me sinto muito mais arrependido e, quem sabe, talvez mais disposto a correr a prova em 2008. Parabéns e feliz ano novo!

Abraços...Marcelo Carone

Anônimo disse...

Edu,

Parabéns pelo belíssimo texto.
Lembrei muito do texto da Adriana Marmo. Eu me senti como se fosse a "outra" panga na elite. Não tem jeito. São Silvestre é São Silvestre. Tem seu brilho especial e é uma prova que gosto de participar. Seja pela festa, pela multidão nas ruas, seja mesmo pela superação...
Parabéns pelo resultado e pela companhia que fez as meninas - Shâmia e Fabiana.
E com certeza estaremos juntos na próxima São Silvestre!

Patricia Vismara

Anônimo disse...

YESSSSSSSS, Edu! Que bacana. Mas confesso que morri de inveja de ter cruzado a linha de chegada com vocês três. Vamos fazer isso em 2008?
Adriana Marmo